terça-feira, 13 de setembro de 2011

À conversa com António Cândido Franco

Foi há cerca de um ano que primeiro tive contacto com a obra deste autor português mas foi depois de ler o seu mais recente recente romance, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, que senti uma vontade de aprofundar o conhecimento que tinha sobre o autor.
Essa sua obra, inteligente e desafiante, é uma p0rta estreita para uma sala ampla repleta de conhecimento. Esta entrevista dá alguns passos por ela dentro.
Foi conduzida via email e o resultado é um conjunto de considerações muito interessantes. O meu agradecimento ao autor pela sua disponibilidade!





- Porque decidiu escrever sobre a Rainha Santa Isabel?
Mário Cesariny em conversa que teve comigo em Dezembro de 1997 chamou-me a atenção para as relações que Isabel de Aragão tivera com Arnaldo Vilanova, um pensador herético que lhe interessava há muito, a ele, Mário Cesariny, e a quem muitos anos antes dedicara um poema. Os Poetas têm impressões de alma, breves como um verso, que valem um tratado de muitas páginas da mais pura Ciência. De resto, a leitura, pela mesma época, dos quadros dramáticos de António Patrício, em Dinis e Isabel, terá ajudado a calar em mim tão estupenda figura. No mesmo sentido correu a leitura da reedição de Titânia, História Hermética em Três Religiões e Um Só Deus Verdadeiro com Vistas a Mais Luz como Goethe Queria, com nota final inédita, em que Mário Cesariny discorre sobre Isabel de Aragão.

- Isabel de Aragão tem, como diz, "aspectos heréticos na sua espiritualidade". Esta heresia faz de Isabel uma figura única na história portuguesa?
Único é aquele que vive para si, sem nome, sem figura, sem estirpe. Isabel de Aragão deixou uma vasta descendência, menos carnal do que psíquica, que fazem dela uma precursora dum vasto movimento cultural, tão largo que chegou até nós, mau grado as tentativas de erradicação por parte do tribunal inquisitorial. O ideário dos Descobrimentos, tal como se formou nos reinados do Eloquente e do seu filho, bem expressos na pintura de Nuno Gonçalves ou em certos passos da prosa de Fernão Lopes, tem uma dívida imensa para com a espiritualidade heterodoxa de Isabel de Aragão.

- Procura na sua obra ter um olhar "revelador" sobre estas facetas menos conhecidas de figuras do nosso passado?
As figuras do passado só revivem através de focos que as desnudem nos seus propósitos mais recônditos e desconhecidos. Só a revelação do segredo reconstrói uma alma como arquétipo indelével. E só o arquétipo interessa a Poesia.

- Em obras anteriores escreveu sobre Inês de Castro e Leonor Teles. Que relação estabelece entre estas três mulheres da Idade Média?
Estamos a falar de três gerações de mulheres, que ocuparam todas três a mesma posição na corte portuguesa, em momentos sucessivos, no curto espaço de pouco mais de meio-século, vivendo nos mesmos espaços e com certeza com valores e comportamentos muito próximos. Atente-se na importância que um desses espaços, Santa Clara de Coimbra, tem no itinerário de duas destas mulheres: é fundado por Isabel de Aragão nos primeiros lustros do século XIV e ressacralizado por Inês de Castro três, quatro décadas após, no momento da sua execução, inumação e exumação, esta na exaltante cerimónia do beija-mão da rainha-morta, cujo rasto escrito remonta ao derradeiro capítulo da Crónica de Dom Pedro de Fernão Lopes, escrita ainda no reinado do segundo filho do Justiceiro.

- Alguma outra figura feminina da Idade Média Portuguesa que gostasse de abordar na sua escrita?
As filhas de Sancho I, uma fundadora de Celas e outra dos franciscanos de Alenquer, são figuras invulgares, a merecer atenção. E Mécia, rainha de Portugal, esposa de Sancho II, é uma figura trágica e poderosa.

- Tem um interesse específico por esta época (Idade Média)?
A Idade Média é uma das raras idades, se não mesmo a única, pelo menos no contínuo histórico do Ocidente, que foi estática. O tempo, que é o acelerador da História, o anti-ansiolítico por excelência, era quase desconhecido. Ora acelerar a História é perder a possibilidade de sair fora de si, é viver em permanente angústia. Quem não sai fora de si não conhece o êxtase, que foi o apanágio de todas as culturas humanas anteriores ou laterais à História. A Idade Média, pela proximidade sensível a que está de nós, tão perto que lhe podemos tocar com os dedos, é uma fonte de sonho, um modelo inspirador duma outra forma de viver mais exaltante, menos egoísta, mais duradoira.

- Nos seus livros História e lenda cruzam-se. Porquê?
A História sem a Lenda é como um corpo sem espessura psíquica. A História é uma fisiologia mecânica, que apenas nos dá a conhecer, quando outras intenções não se intrometem, o movimento das formas. Para haver um organismo que seja mais do que um autómato mecânico precisamos duma alma. A Lenda, tão viva nas suas ideações, é a alma da História.

- Para além dos romances históricos tem também uma vasta obra ensaística e escreve poesia. Tem predilecção por algum campo da escrita?
Platão diz no Fedro – ou diz Sócrates por ele – que há duas espécies de Loucura, a fisiológica, que merece tratamento médico, e a divina, que é uma possessão e uma graça. Entre a Loucura divina distingue quatro tipos: a mística, sob a inspiração de Dionisos; a profética, debaixo do influxo de Apolo; a amorosa, orquestrada por Eros e Afrodite; a poética, sob a influência das Musas, antes de mais Calíope, mãe de Orfeu e de Camões. Tanto faz que se escrevam versos ou linhas de prosa, ensaios ou poemas, romances históricos ou diálogos dramáticos, o que importa é a possessão. À luz deste critério, não há genéros, tudo é o mesmo.

- Escreveu sobre Teixeira de Pascoaes. É um escritor que o marcou e o influenciou?
Teixeira de Pascoaes é o melhor exemplo que conheço dum poeta possesso ou enlouquecido pelo génio divino. A sua obra é um incêndio gigantesco que continuará até ao fim do mundo a consumir o sangue da humanidade. Mário Cesariny viu nele um poeta mais importante do que Fernando Pessoa.

- E Florbela Espanca?
Outra possessa. Vale tanto como a Sibila de Delfos. Bem podemos ir a Vila Viçosa todos os anos, a 8 de Dezembro, dia do seu nascimento e da sua morte, deixar uma rosa em memória desta filha eleita de Calíope.

- Como e quando é que começou a escrever?
Foi com os materiais arrepiantes das primeiras leituras – Zorro, Texas Jack, Tintim, os Cinco, os Sete, os romances que a Portugália Editora publicava numa colecção chamada “livros para rapazes, muito Alexandre Dumas e muito Adolfo Simões Müller – que ideei a primeira escrita.

- Que outras influências tem na sua escrita?
A dos escritores selvagens. Aqueles que não pretendem (só) escrever bem, numa tradição erudita, academizante, artística e antropofágica, mas construir a escrita sobre as sobras vivas dum acto mágico. São esses os escritores que me interessam. Dou dois exemplos: Luiz Pacheco e António Gancho.

- Como vê o actual estado da Literatura Portuguesa?
A chamada República das Letras é uma treta. Escritores médios, ou mesmo medíocres, como José Saramago ou José Echegaray, ganham o Nobel, e outros geniais, como Agustina Bessa Luís, Herberto Hélder ou Raul Brandão vivem retirados, quase apagados, alguns inéditos. Não é atributo nosso – já Camões foi preterido por Pedro de Andrade Caminha – mas das épocas clássicas, utilitaristas, incapazes duma obra colectiva. A lei do mercado actual asselvajou o processo, levando a desmandos incalculáveis. Livros nulos – merda em forma de página – voam às dezenas de milhar de exemplares (basta para isso que o seu autor seja presença popular na televisão); livros geniais, como os de Agustina e os de Hélder, ficam-se por umas centenas ou uns escassos milhares.

- Para além de escritor é também Professor Universitário. Como é que as rotinas dessa profissão o influenciam ou ajudam no processo de escrita?
A Escola é um relógio de Fábrica; em vez de badaladas de bronze tem campainhas estridentes. A Poesia é uma ampulheta silenciosa, cuja areia marca apenas a duração do ritmo. Nem sempre mundos assim distintos podem conviver em paz.

- Pode-se esperar por novas incursões suas pelas figuras marcantes da idade média portuguesa? Serão sempre as femininas ou haverá modelos masculinos que lhe interessam?
A História da Civilização Ocidental escondeu durante séculos a Mulher. Tirando um curto período da Idade Média, responsável pela primeira leva de emancipação feminina, no seio da qual se gerou a agitação da poesia trovadoresca, em particular as cantigas de Amigo, de enunciação feminina, a Mulher não foi vista nem achada no horizonte da nossa cultura. Daí o seu fascínio, pois a fantasia só se exerce sobre aquilo que está escondido. Há figuras masculinas que mantém o mesmo encanto, pois tudo o que delas sabemos se revela um novelo de suposições que se desfazem ao primeiro sopro. Cristóvão Colombo é uma dessas figuras sem biografia, um segredo, um selo por abrir, que mantém inalterado o seu desmedido poder poético de sedução.

2 comentários:

  1. Óptima entrevista! Parabéns. Fiquei com enorme vontade de conhecer este escritor que desconheço.

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  2. Obrigada pelo feedback Helena.
    Espero que chegues, realmente, a ler um livro do autor.
    Não ficarás desapontada.

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