Apesar de já há algum tempo estar pronta, só agora vê a luz do dia a entrevista que tive o prazer de ir realizando numa troca de emails com Cristina Torrão, autora que já tinha dado um excelente contributo ao blogue quando ofereceu exemplares autografados do seu livro D. Dinis - A quem chamaram o Lavrador.
Falei desse livro e, igualmente, de A Cruz de Esmeraldas aqui e aqui, respectivamente. Foram duas excelentes leituras e, por isso mesmo e por ser uma aficcionada de História e Romance Histórico, tinha muito a perguntar. O resultado, devido à simpatia e disponibilidade da autora, é muito interessante e espero que o apreciem.
- O facto de viver e trabalhar na Alemanha, alimenta de alguma forma a nostalgia pela cultura e história Portuguesas, ao ponto de todas as suas obras se basearem nelas?
Talvez, mas não será a razão principal. Comecei a interessar-me pelo romance histórico aqui na Alemanha, onde, há 20 anos, era já um género literário a vender muito bem. Em Portugal, também já existia, mas não na mesma quantidade e, sobretudo, nesta forma, em que as personagens históricas se tornam mais acessíveis, vistas como seres humanos comuns. Comecei a ler, nomeadamente, os romances de Sharon Penman, em língua Inglesa, apaixonando-me pela História das ilhas britânicas, sentindo vontade de pesquisá-la e de escrever algo semelhante. Mas depois perguntei-me: porque haveria eu de escrever sobre um país que mal conheço e onde irei eu buscar as fontes de pesquisa? A época medieval portuguesa não será também apaixonante? A vida do nosso primeiro rei, do fundador da nacionalidade, não daria para escrever um romance interessante? Na verdade, eu, na altura, sabia muito pouco sobre o assunto, via, como todos os Portugueses, D. Afonso Henriques apenas como um guerreiro. Comecei a perguntar-me se seria mesmo assim, quais teriam sido as paixões da sua vida, etc. Por acaso, nessa altura (pelo ano 2000), saiu a primeira biografia de D. Afonso Henriques, escrita pelo Prof. Freitas do Amaral, iniciativa, que, na minha opinião, acabou por despoletar a colecção da Temas e Debates, sobre as biografias dos reis portugueses. Ao ler o livro do Prof. Freitas do Amaral, fiquei siderada com as várias facetas de D. Afonso Henriques, tive aquela sensação de que a matéria dava “pano para mangas”. O romance começou a desenhar-se na minha cabeça. E assim se iniciou esta aventura.
- Porquê o romance histórico? Nomeadamente a época medieval? Os seus romances versam figuras e factos da nossa história, tem algum fascínio pela história medieval Portuguesa?
Bem, já respondi a parte desta pergunta na anterior. O meu fascínio pela época medieval, em geral, vem da minha adolescência, quando comecei a gostar de filmes sobre a Idade Média. O fascínio pela história medieval portuguesa, em concreto, só surgiu quando comecei a pesquisar para as minhas escritas, antes disso, sabia muito pouco.
- Iremos ter mais livros seus versando este mesmo tema? Já existem planos para o próximo? Podemos saber algo sobre a figura histórica?
Sim, ficarei neste tema, nomeadamente, no século XII, a época de D. Afonso Henriques, a que mais me fascina. Interessa-me também o povo comum, pergunto-me que impacto tiveram nele acontecimentos como a Batalha de Ourique, a Conquista de Lisboa, ou mesmo o desastre de Badajoz. Felizmente, nos últimos anos, têm surgidos livros sobre a vida privada, como “Naquele Tempo”, do Prof.José Mattoso, ou a “História da Vida Privada em Portugal”, projecto em que participam vários historiadores. O meu próximo livro não terá uma personagem histórica, como principal (como aliás já aconteceu em A Cruz de Esmeraldas), mas alguém que se vê envolvido nos acontecimentos que se deram entre os anos 1138 e 1147. Foi uma época incrível, cheia de mudanças! É esse vibrar, essa espécie de revolução, que eu tenciono reavivar, porque, ao aprendermos a História, é tudo muito seco, do tipo: em 1139, deu-se a Batalha de Ourique; em 1147, D. Afonso Henriques conquistou Santarém e Lisboa. Apenas assim, como se estivesse tudo planeado. Não estava. As pessoas envolvidas não faziam ideia de como essas aventuras iriam acabar, nem sequer nos sarilhos em que se iam meter. Os movimentos que provocaram devem ter sido impressionantes. Imagine a Joana que vivia no Porto, em 1147, e que, um dia, começavam a chegar, ao cais da ribeira, naus cheias de cruzados! Apenas um pormenor, na História, que, no entanto, representou o mudar de vidas inteiras.
- A Idade Média portuguesa não foi apenas rica em personagens históricos masculinos, mas também femininos. Apesar de alguns deles existirem nas suas obras como personagens, os protagonistas são em maioria homens.
Já pensou em escrever sobre alguma protagonista feminina, como por exemplo a D. Teresa, a Rainha Santa ou D. Inês, que parecem despertar bastante o interesse do público?
Eu pensei escrever sobre a Rainha Santa, mas a editora sugeriu escrever sobre D. Dinis, pois tinha sido publicado, havia pouco tempo, “Onde vais, Isabel”, de Maria Helena Ventura.
O romance que estou a escrever tem uma protagonista feminina, mas não se trata de uma figura conhecida, pois resolvi homenagear as mulheres medievais incógnitas. A minha heroína é uma moça do povo do século XII, oriunda do vale do Douro e que se vê envolvida em acontecimentos históricos da época, como a Batalha de Ourique, ou a Conquista de Lisboa.
D. Teresa daria um excelente romance, sim, é uma ideia...
- O rigor histórico tão presente nos seus livros, é evidentemente fruto de muito trabalho, preparação e pesquisa, quanto tempo leva normalmente a pesquisar para um livro?
É difícil encontrar uma fórmula para cada livro, porque é variável. Para o primeiro (D. Afonso Henriques), levou muito tempo, porque, como já disse, eu sabia pouco. Pesquisei e escrevi ao mesmo tempo, levou uns três anos. Já depois de o ter enviado a algumas editoras (recebendo recusas), continuava a pesquisar, porque descobria sempre livros com novas informações, e modificava certas partes do romance. Entretanto, surgiu-me a ideia para A Moura e o Cruzado e resolvi escrevê-lo, já que não estava a ser bem sucedida com o outro. A escrita deste não demorou muito (é mais pequeno), três a quatro meses. Depois de ter ganho o concurso, surgiu a biografia de D. Afonso Henriques, da autoria de José Mattoso e, depois de a ler, tornei a reescrever o romance.
Para o D. Dinis, pesquisei durante cerca de um ano. O facto de já existir a biografia, da autoria de José Augusto Pizarro, facilitou-me muito o trabalho. O livro demorou sete ou oito meses a escrever.
Tudo depende do tempo que se tem. Eu escrevo de 10 a 12 horas por semana.
- Depois de tudo o que aprendeu durante as pesquisas que efectuou, para escrever os seus livros, com que ideia ficou dessas figuras da nossa história?
Tanto D. Afonso Henriques, como D. Dinis, são homens perfeitamente enquadrados nas épocas em que viveram. Nem D. Afonso Henriques foi sanguinário e violento demais, nem D. Dinis tão mulherengo como se diz. Ambos foram inteligentes, corajosos e bons diplomatas, mesmo o primeiro rei. Marcaram uma época, são, sem dúvida, os dois monarcas mais importantes da nossa Idade Média. Para isso, também contribuiu o facto de os seus reinados terem sido longos. D. Afonso Henriques é mesmo um caso notável de longevidade, podemos concluir que gozava de uma saúde de ferro. D. Dinis teria sido vítima de excessos que, na época, não se sabia fazerem mal, pois não havia análises ao sangue, nem se media a tensão arterial. Era poeta, mais um homem de relações pessoais e de gabinete; D. Afonso preferia a acção, mas eu acho que também foi um homem sensível, com, aliás, se nota no meu livro.
- Sente-se na sua obra uma vontade de mostrar o lado mais humano de cada personagem, isto é propositado? Qual a sua real intenção?
Trata-se do meu principal objectivo. Pela sua obra e pela distância no tempo, essas personagens históricas tornaram-se mitos, seres especiais, mesmo divinos. Mas eram humanos, como todos nós. Eu também não sei como eram, apenas chamo a atenção para esse facto, ao dotá-los de conflitos interiores e emoções.
- Qual dessas grandiosas personagens históricas a impressionou mais, e porquê?
Pelos motivos mencionados, D. Afonso Henriques. D. Dinis foi um grande rei, mas “limitou-se” a dar continuidade à obra do pai. D. Afonso III tinha posto ordem no reino, fazendo muitas reformas legislativas. E, apesar de não ser poeta, foi ele que introduziu o trovadorismo na corte. D. Afonso Henriques iniciou algo de novo, fundou uma nacionalidade, que, quase 900 anos depois, ainda existe.
- E alguma delas a decepcionou do ponto de vista humano? Ou isso não aconteceu?
No geral, não me decepcionaram, pelo contrário: a partir dos factos históricos, julgo ter descoberto facetas sensíveis que ninguém supunha. Mas, já que falamos nisso, penso que D. Dinis me decepcionou um pouco na maneira como lidou com o seu filho e herdeiro. Nessa época, educavam-se as crianças de maneira diferente e era inclusive de bom-tom que monarcas mantivessem uma certa distância, não mostrando os seus sentimentos. Mas não teria ele maneira de evitar que o filho se empenhasse tanto na sua luta contra o pai? Porque beneficiou ele tanto o seu ilegítimo, Afonso Sanches? Penso que, no conjunto da sua obra magnífica, essa foi uma grande falha do Rei Lavrador.
- Se pudesse devolver a vida a uma delas neste exacto momento, qual escolheria?
D. Afonso Henriques, pelos motivos apresentados e para ver se acertei, em alguns aspectos, no que diz respeito à sua faceta humana. E talvez também D. Egas Moniz. Sempre gostava de saber se ele foi mesmo de corda ao pescoço apresentar-se a D. Afonso VII de Leão e Castela...
- Mudando um pouco de tema, qual dos seus livros lhe deu mais prazer escrever?
Bem, como já disse antes, a minha época preferida é o século XII. Por um lado, por ter marcado o início da nacionalidade. Por outro, porque gosto mais da alta Idade Média, parece-me “mais medieval”. Embora o século XIII ainda pertença a esse período, D. Dinis nasceu já na segunda metade e já há uma certa transformação, o embrião daquilo que desembocará no Renascimento. Acho os séculos anteriores mais românticos, costumo dizer que gosto mais de cotas de malha do que de armaduras. As cotas de malha têm um toque sensual, adaptam-se ao corpo de quem as usa, apesar de serem de ferro e pesadíssimas. Mas são como renda, um rendilhado de ferro. Acho as armaduras, tipo carapaça, simplesmente horríveis. Por isso, gostei realmente mais de escrever sobre D. Afonso Henriques do que sobre D. Dinis, que foi, aliás, uma sugestão da editora. Embora eu ache que evoluí na linguagem, o que me faz pensar que o último romance (D. Dinis) está mais bem escrito.
Depois, há o aspecto de escrever sobre uma personagem histórica e uma fictícia. Livros como A Cruz de Esmeraldas, ou o que iniciei agora, dão mais liberdade, o enredo tem mais hipóteses de se desenvolver por si próprio. Escrevendo sobre um rei, tenho de me sujeitar a um percurso de vida “programado”, o que nem sempre é fácil, pois vejo-me na situação de arranjar uma lógica para atitudes que, às vezes, se me afiguram difíceis de explicar.
- Quais são os seus escritores favoritos? Tem algum livro a que chame, “o livro da minha vida”?
Indico sempre o Eça de Queirós como escritor favorito. O livro que mais vezes li é, sem dúvida, Os Maias (umas quatro ou cinco vezes). Adoro o poder de observação de Eça de Queirós, aqueles detalhes que tudo dizem (os “cigarros pensativos”, o “papá Monforte entalado na sua gravata”, “a coxa gorda do Dâmaso a estalar nas calças”)… Também gostei muito de ler Anthony Throllope, um inglês, um pouco anterior a Eça. Notei parecenças entre os dois. Como Eça de Queirós é posterior e era grande apreciador da cultura britânica, acho possível que se tenha inspirado um pouco em Throllope, embora nunca tenha visto referência a isso em lado nenhum.
Refiro ainda Sharon Penman, cujos romances históricos me levaram a começar a escrever, nomeadamente, o livro intitulado Here be Dragons. Sob este ponto de vista, talvez seja Here be Dragons o livro da minha vida.