Há crianças que crescem a admirar estrelas de televisão e cinema, que tem como ídolos. Por entre as histórias dos contos de fadas que preencheram a minha infância, houveram outras histórias bem mais reais, que faziam parte da história de Portugal e que me encantavam desde que lembro, que o meu pai sempre me contou dizendo “esta história aconteceu mesmo”, levando-me a distinguir entre as histórias reais e as de ficção. Assim os meus ídolos na infância eram constituídos por figuras históricas que para mim se destacavam por terem feito algo de realmente importante no mundo real, muito mais que um determinado cantor ou actor.
Pode parecer-vos quase mórbido mas uma das minhas primeiras memórias de infância é de ter pedido ao meu pai que me pegasse ao colo para beijar a estátua ao túmulo de D. Afonso. Ora para mim que era uma criança pequena não houve nisso nada de mórbido, foi como beijar um velho tio ou uma velha tia que me fosse querido. Até porque as minhas noções de morte e cadáver não estavam naquela altura completamente definidas. Apenas tinha alguma noção que D. Afonso Henriques estava ali quase como que a dormir.
Seja quem for o português que se escolha, qualquer um já ouviu falar do primeiro Rei de Portugal, até pode não saber o nome de mais nenhum rei, até pode não simpatizar com a monarquia, mas se há figura história que consegue reunir a simpatia de quase todos os portugueses é, sem dúvida, Afonso Henriques, que é visto como o pai da nação e de alguma forma é como antepassado de todos portugueses. Não há figura histórica mais popular ou mais positiva aos olhos do nosso povo.
Dele contam-se as suas façanhas, batalhas e exemplos de coragem mas, na realidade, muito pouco se sabe do que está por detrás do herói que fundou o nosso reino. Estamos longe de saber que tipo de homem era na realidade, como era seu dia a dia quando não estava em batalha, que sentimentos e motivações o moviam ou como o rapaz que fica órfão de pai ainda adolescente, que nasce destinado a ser um conde e não rei acaba por criar um reino.
É a este género de questões que Cristina Torrão pretende responder neste seu livro. Não lhe interessa contar uma história que já foi centenas de vezes contada sobre os feitos heróicos de D. Afonso Henriques, interessa-lhe sim contar quem foi o homem de carne e osso por trás do herói. Logo se está há espera de ler a história de um homem que nasce herói e faz façanhas este livro não é para si, mas se quer ler sobre quem realmente foi o primeiro rei de Portugal - quem era, como agia e o que sentia - então esta sim é uma aposta segura que lhe desvenda quem foi o homem por detrás da lenda.
Assim, D. Afonso Henriques não nasceu um herói, era sim um jovem bastante, temperamental, orgulhoso e com um feitio volúvel que facilmente podia ter contribuído para a sua queda se não fosse devidamente guiado pelos seus três concelheiros, Egas Moniz, seu irmão Ermígio Moniz e o arcebispo de Braga D. João Peculiar, que lhe ensinaram a temperar os seus impulsos e usar a sua coragem e furor em momentos devidos.
É de destacar, entre estas personagens, a figura de Egas Moniz. Há uma lenda que assume que D. Afonso Henriques não era filho do conde D. Henrique mas sim de Egas Moniz. Ora essa lenda não tem qualquer fundamento histórico, mas talvez tenha começado com algum fundo de verdade pois D. Egas Moniz foi, de facto, uma figura paternal para Afonso. Desde cedo sem o pai para o guiar, o jovem Afonso viu Egas Moniz merecer-lhe a confiança, o respeito e admiração profunda. Era um homem sábio, de carácter nobre e paciente e que estaria ao lado de D. Afonso o resto da sua vida.
Outra personagem que nos é apresentada de forma convincente e elucidativa é D. Teresa, geralmente apresentada ora como uma vítima do filho que a prende, ora como uma víbora e má mãe que desgraça a memória do defunto marido e se vira contra o próprio filho. D. Teresa não é nenhuma das duas coisas, nem uma vítima, nem uma má mãe. É antes uma mulher de quem o filho herda grande parte do feitio, que tem uma personalidade invulgarmente forte e lutadora para as mulheres da época. Ela não é mulher desgovernada que o filho prende para própria protecção, nem tão pouco é uma má mãe que se revolta contra o filho por não gostar dele. É sim uma mulher que acredita que luta pela sua herança pois o Condado Portucalense pertencia originalmente ao seu pai. Morto o marido ela vê-se como herdeira legítima, por direito de sangue, da terra que pertencera a seu pai. Mas apesar de tudo é uma mulher que ama o seu filho que tem na realidade o único defeito de ser demasiado parecido com ela.
Mas a vida familiar de Afonso não acaba em D. Teresa e por contraste com ela temos D. Mafalda que encaixa perfeitamente nos ideais da mulher da época, sendo uma mulher grácil, tímida e pacífica que, de certa maneira, traz algum equilíbrio ao D. Afonso que nutre por ela uma terna afeição. Afeição ainda mais intensa pelos seus filhos, pois o Afonso que imaginamos quase sempre como um bravo guerreiro no campo de batalha era um pai extremoso cujo coração se derretia pelos seus filhos. Na verdade é difícil termos uma dimensão mais humana do rei do que essa que nos é dada pela autora do homem que ama os seus filhos, que brinca com eles, que os carinha, que chora sem qualquer tipo de vergonha pela morte de um deles. É uma parte que nos leva a simpatizar particularmente com a personagem.
Claro que as batalhas existem e são contadas no livro, mas estão longe de ser tão heróicas e interessantes como pensaríamos que fossem. São pouco mais que escaramuças sangrentas entre algumas centenas de homens, que nada tem de heróico ou grandioso e que ficaram bem mais longe de despertar o interesse que a restante vida de D. Afonso Henriques. Ele próprio acaba por entender que não há nada de glorioso na guerra, que matar as pessoas em nome de uma crença religiosa não faz sentido.
A escrita de Cristina Torrão é simples o que torna este livro bastante acessível aos leitores. No entanto, tem um detalhe e realismo invulgares para o romance histórico. A autora faz um enquadramento histórico sublime, com grande lucidez e neutralidade. Dá-nos o retrato do primeiro rei de Portugal como um homem com muitas virtudes, mas também com defeitos. Retrata uma época particularmente sangrenta nas batalhas, mas ao mesmo tempo onde as populações de mouros e cristãos coexistiam especificamente e se não fossem as iniciativas dos seu líderes não teriam grandes zaragatas.
No entanto, não existem por parte da autora julgamentos de valor relativamente aos povos e aos personagens. Ela não diz se é D. Afonso ou D. Teresa quem tem razão na luta, não nos diz quem são os heróis ou os vilões da história. Até porque na sua história o que existem são personagens de carne e osso, com diferentes motivações mas que não os tornam melhores nem piores. E é isso que torna este livro único: não estereotipar tudo e todos. Permitir-nos entender como pensavam, sentiam e viviam pessoas que já viveram há muitos séculos mas que sua essência não era assim tão diferentes do que somos actualmente.
Editora: Ésquilo
Páginas: 432
Género: Romance Histórico
Sem comentários:
Enviar um comentário