Foi através de email que a autora Isabel Machado recebeu as minhas perguntas. Sem evitar nenhuma, mesmo aquela sobre o seu futuro trabalho, antes aproveitando para se alongar em alguns temas importantes.
A entrevista tentou, como sempre, falar da obra - neste caso, de Isabel I de Inglaterra e o seu médico Português - mas também do próprio percurso da autora e do que o seu trabalho contribui para a sua visão da actualidade do país.
Espero que gostem do resultado final.
- Porque escolheu o romance histórico como género para a sua obra de estreia?
Na verdade, foi um desafio que me lançaram e que aceitei logo, perfeitamente consciente da loucura que estava a fazer. De qualquer forma, sempre gostei deste género literário e adoro história. Da experiência que tive, estou convencida que só quem goste muito de história deve avançar para uma coisa destas. O trabalho de pesquisa pode desmotivar o mais afoito! Chega a ser brutal.
- Que romances históricos leu que a fizeram sentir-se mais inclinada a este género?
Tenho lido muitas coisas, a começar pelos incontornáveis Walter Scott e Alexandre Herculano. Devo dizer que gosto muito dos pré-românticos e dos românticos ou dos romancistas e poetas de inspiração romântica, incluo neste grupo desde Jean-Jacques Rousseau, Victor Hugo, o nosso Almeida Garrett, Chateaubriand, ou os americanos Nathaniel Hawthorne e o magnífico Walt Whitman. Todos estes autores me marcaram muito na juventude, claro que nem todos fizeram exactamente romance histórico. Entre os mais recentes, gosto muito de Gore Vidal, Amin Maalouf, mas tento ler coisas diferentes, nos últimos anos também incluí Phillippa Gregory, de que não gostei logo, admito, tem uma linguagem e um ritmo muito próprios mas que aprendi a apreciar porque os seus romances se passam imediatamente antes e durante a dinastia Tudor. Desta época, há um romance histórico brilhante, da Hilary Mantel, chamado Wolf Hall, sobre Thomas Cromwell, o controverso ministro de Henrique VIII. Entre os autores portugueses, há excelentes romances históricos contemporâneos, muito diferentes entre si, de Fernando Campos a Saramago, entre muitos outros mais jovens, não quero referir nomes porque acho injusto se me esquecer de algum.
- Que outras influências tem a sua escrita?
Não sei responder directamente a essa pergunta, talvez os outros o possam fazer melhor do que eu, não tenho o distanciamento necessário. O que posso dizer é que também fui muito marcada por grandes romances de crítica social ou de grande densidade psicológica de Charles Dickens, Stendhal, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Flaubert, Emile Zola. Eu quis escrever uma história que trouxesse algo de novo e que pudesse ser lida por toda a gente, sem banalizar. Límpida, clara, mas com uma linguagem agradável, com pormenores, ensinando também. Sentia uma responsabilidade enorme por trazer pela primeira vez para a literatura portuguesa esta figura decisiva da história mundial e outras suas contemporâneas. Quis humanizá-las, torná-las familiares ao público português, respeitando sempre muito o contexto histórico. Quis enquadrar as personagens no período em que viveram, explorando a política, a religião, a medicina, a espionagem, as diferenças entre as classes sociais. E, claro, cruzando a história dos dois países, com uma perspectiva crítica.
- Como se consegue escrever um romance histórico de 512 páginas?
Praticamente enlouquecendo, nós e os que estão à nossa volta. Com muito trabalho. Muito trabalho. Alguns momentos de desespero mas tem de se acreditar. Pus na secretária um pequeno livrinho, que comprei há uns anos, com o título Keep Calm and Carry On, aquele slogan fabuloso dos cartazes ingleses durante a II Guerra Mundial e que, de repente, ficou na moda. Com determinação e trabalho tudo se consegue. Agora, acho que houve um factor fundamental que foi o prazo que eu tinha para escrever. Sou muito desorganizada com papéis, a minha secretária e o chão à volta é um caos, perco-me no meio dos meus próprios apontamentos, dos livros, das fotocópias, é mesmo muito mau, mas sou extremamente cumpridora. Sou incapaz de falhar um prazo. Portanto, mesmo que caísse para o lado no final, como veio a acontecer, tinha que entregar o livro no dia previsto. Acho que isso ajuda. Ser cumpridor é fundamental porque nem nos ocorre que iremos falhar. Podemos morrer a seguir mas honramos o compromisso.
- Quanto tempo lhe durou a pesquisa e, depois, a escrita em si mesma?
Não chegou a um ano, quase um ano, no total. Uma verdadeira loucura. Nos meses finais, não fazia mais nada, vivia quase totalmente alienada da realidade. A pesquisa desenvolve-se no início mas, na verdade, nunca me abandonou completamente. Estava sempre a confirmar factos, pequenas coisas, aparentemente mínimas, mas muito importantes. Coisas que só nos ocorrem quando já estamos a escrever, por se tratar de uma época bastante recuada colocam-se imensas dúvidas no meio de uma cena, de uma descrição, pormenores do dia a dia, dos hábitos daquela época, até dos legumes que se comiam numa determinada altura do ano, as flores que havia, os materiais, os objectos, tudo o que se possa imaginar.
- Porquê este período histórico em concreto? Alguma atração especial por Isabel I de Inglaterra?
Primeiro, escolhi a figura, Isabel I. Porque é uma mulher que sempre admirei, que se impôs num mundo de homens, governando de uma forma muito sui generis, muito feminina, uma mulher brilhante, cultíssima, manipuladora, com um humor extraordinário, mas contraditória, carente, insegura, indecisa, atrevida, picante, de uma vaidade absurda. Consegue sobreviver até chegar ao trono devido à sua inteligência, astúcia e determinação. E depois, confundindo tudo e todos, vai impor a sua vontade: não casa, evita as guerras até ao limite, pacifica o reino, cria uma igreja anglicana moderada, apoia a literatura e as artes em geral e projecta Inglaterra no mundo. Isabel I altera a ordem de poder na Europa para sempre. O período histórico também era irresistível: o Renascimento é uma das épocas mais fascinantes da Europa, com todas as convulsões religiosas, políticas, artísticas e científicas que trouxe.
- Sente-se na sua obra uma vontade de mostrar o lado mais humano de cada personagem, isto é propositado? Qual a intenção disso mesmo perante o leitor?
Sim, é rigorosamente propositado. Foi, aliás, um dos principais objectivos a que me propus desde início. Eu não queria escrever um daqueles romances históricos em que os acontecimentos se sucedem uns aos outros, sem pausas para pensar, reflectir. Acho que este não é um livro que se lê de um fôlego. Quis dar densidade às personagens. Densidade e coerência, mesmo na sua aparente incoerência, como é o caso de Isabel I. Acredito que todos nós somos, acima de tudo, pessoas e a nossa forma de ser determina tudo o resto. Eu queria que os leitores “vissem” aquelas figuras, que lessem as suas pequenas reacções, que as interiorizassem. Quis defini-las com muito cuidado. Em primeiro lugar a rainha, foi um trabalho muito interessante porque é difícil encontrar uma personalidade mais complexa do que Isabel I. E todos os outros. Por exemplo, William Cecil, Francis Walsingham e Robert Dudley, os principais conselheiros do reinado, eram com certeza pouco conhecidos de muitos portugueses, todos muito diferentes entre si. Quis vincar bem a personalidade de cada um na forma como se exprimiam, como falavam com a rainha, os seus gestos, as roupas que vestiam. Walter Raleigh é outro caso, não poderia passar ao lado da sua extravagância, daquela vaidade insana, daquele excesso que encantou Isabel, sempre atraída por homens belos e exagerados. Era fundamental para mim aprofundar a componente humana, as angústias, as paixões, as vaidades, os medos, o amor, a raiva, o ciúme, sentimentos que todos conhecemos mas que expressamos de maneiras tão diferentes. Penso que nenhum leitor, ao fim de algumas páginas, está à espera que o William Cecil entre aos gritos pelos aposentos da rainha, como ponho o Robert Dudley ou, mais tarde, o conde de Essex a fazer. Mas ninguém a vergava como ele. Ou que o Francis Walsingham recorra à lisonja ou aos floreados para falar com a rainha. É directo, quase brutal. Gosto de personagens bem marcadas e dos contrastes, do ridículo, do absurdo.
- Com que ideia ficou de Isabel I de Inglaterra? E de Rodrigo Lopes?
Fiquei com a ideia de que era uma mulher bastante marcada pela sua infância e juventude. Muito atormentada pelo passado. Começo o livro com um pesadelo por isso mesmo. Acho que o principal motivo que a levou a não casar - para além da sua indecisão crónica - foi o medo. Medo de ser infeliz, medo de perder o apoio popular, medo de subjugar o reino a interesses de fora. Precisou de ter o poder todo mas era brutalmente carente. Surpreendeu-me muito a sua dificuldade em tomar decisões. Foi talvez a maior surpresa para mim, imaginamos sempre Isabel I como uma mulher de pulso de ferro, que corta a direito e decide rapidamente e com frieza. Pois, era exactamente o contrário. Não conseguia decidir. Mas depois, sempre que o perigo era real e imediato, não hesitava, como aconteceu com a ameaça da Invencível Armada. Foi o momento mais brilhante do seu reinado.
Com o Rodrigo Lopes foi um trabalho muito diferente. Não há quase nada sobre a personalidade dele, o que existe é preconceituoso, racista, completamente parcial, era um estrangeiro e um judeu e é sob essa perspectiva que ele é descrito. Inventei-lhe uma personalidade que me pareceu coerente com as actividades que desenvolve, fazendo-o aparecer desde cedo como um homem muito ambicioso e insatisfeito com a estagnação, alguém que quer sempre mais. Sendo o primeiro físico residente numa grande instituição hospitalar de Londres, existe uma única descrição de um tratamento inovador que fez, compus a personagem como alguém com sucesso profissional, sempre em busca de conhecimento, baseando-me em estudos de outro médico português que fez furor na Europa, mais ou menos na mesma época, Amato Lusitano. Por outro lado, para agradar à rainha, sabe-se que lhe lia livros, tinha de ser sofisticado, inteligente, culto, interessante. Isabel I era exigentíssima com a escolha dos raros eleitos que partilhavam a sua privacidade. Acima de tudo, era um português que eu quis tratar bem, não ocultando as debilidades do seu carácter, como eu as imagino. Também não há nada que nos fale das suas relações com a família, os amigos, os colegas. Casou realmente com Sarah Anes e estava integrado na comunidade portuguesa de Londres, isso é tudo real. Mas o seu contexto familiar, a história de amor com Sarah e a grande amizade com Heitor Nunes, também uma personagem real, são romanceados.
- A versão que chegou aos nossos dias do relato sobre Alcácer Quibir e a ocupação espanhola parece-lhe a correcta?
Não, não me parece nada correcta e deixo isso bem claro no livro. Ninguém nos contou na escola que uma boa parte da nobreza e do alto clero de Portugal foi subornada por Filipe II. Só nos disseram que ele invadiu Portugal, o que é rigorosamente verdade também. Mas até chegar à invasão, entre a batalha de Álcacer-Quibir e a entrada das forças de Filipe II, passam-se dois anos, dos quais nós praticamente nada sabemos. O que se ensina na escola é a morte de D. Sebastião, seguida da morte de Luís de Camões e a perda da independência. E tudo o que se passou entretanto? A corrupção, a compra das elites por parte do rei espanhol e a desavença entre os portugueses? É evidente que muita nobreza e boa parte da elite militar foram desbaratadas no norte de África. Mas se os pretendentes se tivessem unido, pressionado o cardeal D. Henrique, o grande responsável pela desgraça, Filipe II não teria tido a vida tão facilitada. É neste contexto que desenvolvo uma outra personagem, que me parece fascinante, o D. António, prior do Crato e outros heróis portugueses, da nobreza e do povo, que não se resignaram e se levantaram em armas contra o mais poderoso exército do mundo, mesmo sem qualquer preparação. Foram momentos de grande heroísmo que quis homenagear, digamos assim. Aliás, Portugal aparece sempre na história com uma nota de afecto, também propositada, em todos os capítulos aqui passados, no Crato, em Coimbra, Lisboa, Santarém, Peniche, Cascais ou Estoril. Alguns destes locais foram cenários reais de momentos muito dramáticos.
- Iremos ter mais livros seus versando este mesmo tema? Já existem planos para o próximo? Podemos saber algo sobre a figura histórica?
Ainda não posso adiantar nada, apenas que estou em início de pesquisa.
- Como vê o actual estado da Literatura Portuguesa? E do Romance Histórico em particular?
Acho que a literatura portuguesa atravessa um momento de grande pujança, grande vigor, com muita qualidade. Para além dos grandes nomes consagrados da segunda metade do século XX, apareceu nos últimos 10, 15 anos, uma geração fabulosa de escritores. O romance histórico está bem e recomenda-se. Há cada vez mais autores, o género está em franca expansão e isso é óptimo. Acredito que o romance histórico capta novos leitores, as pessoas gostam muito de aprender história de forma lúdica, que é um dos grandes objectivos deste género literário. Há para vários gostos e ainda bem. A diversidade é uma mais-valia.
- O que está a ler neste momento ou leu recentemente que recomende aos leitores?
O drama da pesquisa é que se fica de tal maneira imerso em informação histórica que se tem pouco tempo para ler, mas vai-se arranjando aos bocadinhos. Por isso, não resisto a partilhar o que vou tentando ler, nos intervalos, um livro delicioso que uma amiga me emprestou há duas semanas, do Bill Bryson, que escreveu há uns anos a Breve História de Quase Tudo. Este chama-se Em Casa. Um livro diferente, vale a pena.
- De todas as actividades que já desempenhou, qual a que a preencheu mais?
Do passado, talvez a grande reportagem, em televisão, e a reportagem alargada na imprensa. Mas guardo memórias maravilhosas dos anos de ensino. Tenho uma admiração imensa pela figura do educador, do professor. Foi uma grande entrega, eu ensinava português e francês, duas disciplinas normalmente odiadas, como a matemática, e, por isso mesmo, foi muito difícil mas muito gratificante. Vivia intensamente as dificuldades dos alunos, esforcei-me sempre por simplificar, acho que é esse o caminho. Acredito que um professor consegue fazer milagres. De vez em quando, sinto saudades da televisão mas adoro o que estou a fazer agora. Talvez seja esta a actividade que mais me preenche.
- Que balanço faz da sua participação no Canal Parlamento? A nossa democracia está de boa saúde?
Foi insuficiente, saí por minha vontade, por motivos de saúde e de princípio, recusei-me a vir para casa com uma baixa de longa duração, sou ferozmente contra isso, excepto em casos muito graves, mas saí com grande frustração e pena. Sempre sonhei fazer reportagens no Canal Parlamento. Pequenos documentários também, há muitas formas de aproximar os cidadãos do seu Parlamento e dar a conhecer o que ali se faz. Quanto à democracia, são os cidadãos que devem controlá-la. Avançou-se muito em Portugal porque tínhamos um grande atraso mas a democracia é um trabalho permanente, nunca nos devemos alhear porque isso seria matá-la. A democracia vem da população. Votar é um dever, é o principal dever. Outro é participar mais. As pessoas têm imensa força, todas as conquistas da humanidade se deram com muito, muito esforço. Devíamos abandonar a nossa zona de conforto. Choca-me que exista em Portugal ainda tanto medo. É talvez das coisas que mais me choca. Ainda se vive amordaçado em Portugal.
- Depois de ter vivido nos Estados Unidos e em Macau, como olha para a Europa e para Portugal em particular?
Precisamente por ter vivido nos Estados Unidos e na Ásia, acredito profundamente no ideal europeu. Acho a União Europeia uma conquista maravilhosa, juntar quase 3 dezenas de países com línguas, história, culturas diferentes, que se guerrearam durante séculos, é um exemplo para a humanidade. A Europa é pioneira nas lutas pela liberdade, pelos direitos humanos, como a época de Isabel I bem mostra. Acho que se deve fazer tudo, tudo para salvar a Europa. Mas sou muito crítica, há muitos anos. A guerra nos Balcãs devia ter acordado a União Europeia, incapaz de resolver um conflito brutal, um genocídio, às suas portas que, ainda por cima, era mostrado em directo e a cores pela televisão diariamente. Foi terrível assistir à ineficácia das negociações durante anos. Acredito nas capacidades do ser humano. Acredito em Portugal também. Vivemos momentos muito difíceis mas se há coisa em que os portugueses são especialistas é a sobreviver a crises. Tenho de reconhecer que até um optimista como eu às vezes desespera...mas quero terminar com uma nota positiva e dizer que acho que existe um génio português.