Capa original da edição da Companhia das Letras (capa nacional definitiva ainda por revelar) |
Passageiro do fim do dia (Rubens Figueiredo)
O romance vencedor do prestigiado Prémio PT Literatura 2011 é um livro sobre várias viagens. A primeira começa quando Pedro, o passageiro do fim do dia, apanha o autocarro do centro da cidade rumo à periferia para ir ter com a namorada. É hora de ponta e a viagem demora. Dá tempo para ler e também para deixar correr os pensamentos.
Pedro é um observador. Uma pequena cicatriz no cotovelo do homem que está sentado à sua frente, ou o longo suspirar da mulher que segue ali ao lado, são pequenos detalhes que (nos) prendem a atenção e fazem voar, para logo regressar(mos) ao livro de Darwin e às notícias da economia que Pedro ouve no pequeno rádio a pilhas.
Observando o que se passa dentro do autocarro, e também na rua, Pedro é, terminada a viagem, um homem diferente, alguém mais atento às desigualdades sociais, mais conhecedor e mais crítico.
O passageiro do fim do dia é por isso literatura, sociologia e política. Numa alegoria plena dos dramas urbanos contemporâneos, Rubens Figueiredo oferece ao leitor um retrato do Brasil atual, desigual, fervilhante, e uma história que revela a beleza delicada de uma escrita sobre a periferia pobre da cidade grande: uma espécie de panela de pressão de violência e de crueza no fundo de verdade que é o osso da vida.
Deixo-vos, além do booktrailer, os belos parágrafos de abertura do livro, para lhe apanharem o gosto!
Não ver, não entender e até não sentir. E tudo isso sem chegar a ser um idiota e muito menos um louco aos olhos das pessoas. Um distraído, de certo modo — e até meio sem querer. O que também ajudava. Motivo de gozação para uns, de afeição para outros, ali estava uma qualidade que, quase aos trinta anos, ele já podia confundir com o que era — aos olhos das pessoas. Só que não bastava. Por mais distraído que fosse, ainda era preciso buscar distrações.
Pedro abriu com a unha a tampinha da parte de trás do rádio minúsculo e trocou a pilha. A música foi devolvida, tão forte quanto os chiados e mais alta do que os barulhos da rua. Ele tinha enfiado os fones nos ouvidos. Estava de pé, num fim de tarde, colhido numa diagonal rasante por um sol cor de brasa que se recusava a ir embora e se negava a refrescar. Um sol quase colado à sua testa e também à testa de todos os outros, que se mantinham em ordem numa fila, à espera do ônibus no ponto final.
Não havia nada entre o sol e as cabeças de todos ali, a não ser a parte mais alta do poste de concreto e os fios bambos de eletricidade ou de telefone, que lá em cima irradiavam para os dois lados numa simetria de costelas. A sombra da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar — Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver.
Pensando bem, não era tanto uma questão de hábito nem de mimos. Acontece que toda hora é hora de avançar na escala evolutiva, subir mais um degrau. É mesmo impossível ficar parado e, qualquer que seja a direção em que as pernas começam a andar, o chão logo toma a forma de uma escada. Além do mais, é preciso reconhecer: sem mal‑estar, sem adversidade, sem um castigo sequer, como se pode esperar que haja alguma adaptação?
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